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GUARANI

Toda operação executa uma transformação, um antes e um depois na vida de um corpo. Nas cumuladas lembranças da minha infância, tem lugar especial o caminho que tomávamos, minha mãe e eu, em direção ao cinema. Em meados da década de 80, morávamos só os dois em Porto Alegre, na periferia, quase fora da cidade. Assistir a um filme era o nosso programa de domingo, e significava atravessar pelas ruas em direção ao Centro, onde estavam as antigas salas de projeção. Estas salas acomodovam muitas pessoas simultaneamente. Em espaços amplos, as telas grandiosas cediam vez a uma programação de grande apelo. O meu cinema predileto da época tinha um nome peculiar: Guarani, possivelmente em busca de identificação com um finado ideário heróico e romântico. Ficava diante da principal praça local, a Alfândega, visitada por toda a sorte de gente. Numa daquelas tardes, presenciei uma sessão lotada por ávidas pessoas interessadas em acompanhar as desventuras de um pugilista norte-americano contra a potência russa: em cartaz, Rocky IV, com o Stallone.

Não há vivência cinematográfica capaz de suplantar a intensidade do que experimentei naquele dia. Por todos os cantos, ao soar o tema da vitória, nos momentos de luta, a música num crescendo era acompanhada por frenéticas batidas de pé, de cada espectador, contra o chão. Habituado a modos bem-comportados, de acordo com a rigorosa cartilha familiar, lembro de olhar curioso para a mãe, consultando-a sobre o que seria o melhor a fazer, ante a onda irrefreável dos corpos ecoando em massa pelo cinema. As cadeiras tremiam, os acordes nos alcançavam por cima de toda frenética movimentação. Iluminado pela luz que vinha do filme, recebi uma breve menção positiva de minha mãe, já absolutamente envolvida, seu rosto vidrado transtornado pela alegria, naquele turbilhão de carreadas emoções fluíndo por cada um, em toda a sala. A pele esticada da tela, expandida e transformadora, corporificada em nossa purificação coletiva, em busca da vibração comunitária, numa tentacular ânsia pelo expurgo de toda a tristeza vulgar que insistia em nos convencer diariamente de nossa não participação nas decisões de qualquer luta, fosse ela qual fosse; de um pugilista no ringue, ao homem pacificado na arena do cotidiano, em seu denodado empenho por constituir significativas relações de troca e circulação na economia dos afetos. Por instantes que fosse, estávamos vivos, a despeito de qualquer evidência contrária, na rotina de nossos tempos.

Tempos depois voltamos ao mesmo cinema para assistir, numa tarde de verão, ao principal vencedor do Oscar daquele ano. Era Entre Dois Amores, com o Robert Redford e a Meryl Streep. São poucas as recordações que tenho daquele filme, tomado hoje como “simplório”, ou “ridículo” pela crítica especializa. Na época achei muito chato e depois nunca mais revi. O que lembro da sinopse é bem impreciso e raso, algo do gênero “mulher em derrocada enfrenta a própria ruína por seu temperamento incontrolável”. Talvez seja isso, talvez não. O fato é que, no entanto, até hoje, tantos anos, e ainda me pergunto o que havia por baixo da face grave, silenciosa e reflexiva de minha mãe, ao término da sessão.
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Texto contemplado em concurso cultural do site Catraca Livre. A tarefa era escrever sobre uma experiência de vida inspirada num filme. O prêmio foi um pacote de 20 filmes da Mostra de Cinema. Conheça os demais ganhadores no site Catraca Livre.

SONIC YOUTH + BREEDERS LIVE SP 08/09

(Cobertura para o show de duas bandas do coração.)

A PELE ESTICADA DO TEMPO: SONIC YOUTH: 28 anos. Quantas bandas, no cenário evanescente do rock, duram tanto tempo? E dessas, quais permanecem relevantes pelo que produzem agora? Se há alguma outra, o Sonic Youth mostrou do que é feito o seu engajamento com o presente. Numa apresentação de 75 minutos a banda nova-iorquina tocou quinze faixas e dividiu o show em duas partes bem evidentes. A primeira, dedicada sobretudo as músicas do seu último disco, The Eternal, de onde saíram as três faixas de abertura, “No Way”, “Sacred Trickster” e “Calming, the Snake”.

Depois, condensou composições desta década, como “Pink Steam” e “Jams Run Free” – esta com direito a já famosa dança de Kim Gordon, nítida expressão de sua desengonçada sensualidade -, com outras dos anos 80, caso da característica “Stereo Sanctity”, uma surpresa para fãs responsáveis pela consagração estética pós-punk do grupo. Ao contrário das apresentações anteriores em SP, ocorridas em 2000 e 2005, nenhuma música dos anos 90 foi ouvida ao longo do show, sem no entanto comprometer a adesão da platéia – no gargarejo, tomado por jovens fãs, todos demonstravam entusiasmo, mesmo ante a chuva renitente.

Com a formação original acrescida de Mark Ibold, baixista do Pavement, a apresentação, vigorosa, alternou os momentos enérgicos com outros plenos de contemplação. A escolha do repertório, com a dobradinha “The Sprawl” e “Cross the Breeze” bem no meio do show ressaltou a estratégia, graças às suas melodias. Antes do início, os fãs comentavam alvoroçados a disposição de mais de 20 guitarras diferentes no palco. Renovados significados despontam quando “Death Valley 69” é resgatada, no encerramento do show, lá dos primórdios da discografia, numa versão rigorosamente encorpada. Extasiante como o divertido tombo de Kim Gordon, admitido à sua performance, durante “Jams Run Free”: “maduros” até na arte de cair.
(Nov, 09)
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A espontaneidade deu o tom da apresentação das Breeders em São Paulo. A vibe era de cumplicidade irrestrita com a platéia, e os corpos se fizeram presentes: da bunda exibida pela guitarrista Cheryl Lyndsey, que acompanha a banda ao vivo, à uma jovem espectadora que chegou na boca do palco levada pelos braços da galera, os sinais eram de êxtase e libertinagem. Ligeiramente atrasados por um problema no microfone de Kim Deal, o show começou com “Tipp City”. Logo na seqüência vieram “Huffer”, “Divine Hammer” e a nova “Bang On”, em um dos melhores momentos do show.

Lá do gargarejo a sensação era de comoção e êxtase. Fãs emocionados entoavam as músicas em companhia de Kim Deal, e a única possibilidade era a de não ficar parado em nenhum momento. A sensação era a de uma festa boa, em algum clubinho da Augusta, animada por uma banda muito legal. A diferença é que na nossa frente estavam as Breeders. Sendo assim, acompanhamos deliciados a original mistura de pós-punk com surf music, como em “I Just Wanna Get Along”, ou no tom vibrante e lisérgico de “No Aloha”, alternados com outros mais climáticos, caso das melódicas “Night of Joy” e “Drivin’ on 9” – esta com direito inclusive à presença de um violino levado acanhadamente por Kelley Deal.

Com direito a cover do Guided By Voices e dos Beatles, o final guardava surpresas, como “Iris”, lá dos primórdios da banda. O bis, mirrado, com o espanhol bizarro de “Regala Me Esta Noche”, garantiu um encerramento tão melancólico quanto incomum. Já o impacto de um hit como “Cannonball” é algo que nenhuma palavra parece capaz de reconstituir. Na companhia das Breeders, a potência de sua vibração é capaz de proporcionar a suspensão do tempo, em qualquer lugar, agora mesmo, durante uma hora muito divertida vivida aqui em 2008.
(Nov, 08)
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Resenhas publicadas no Rraurl.com

MOUNTAIN BATTLES

Resenha para o disco das Breeders, Mountain Battles.
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The Breeders – Mountain Battles
Brizada, banda recusa obviedades e acerta em disco climático

É com uma espécie de mantra de guerra que as Breeders, banda egressa do final dos anos 80 e formada por Kim Deal (baixista do redivivo Pixies), retorna das profundezas em seu novo disco, Mountain Battles – trata-se do quarto álbum na discografia do grupo, o primeiro desde Title Tk, lançado em 2002.

Em “Overglazzed”, faixa de abertura, o tom de seu canto é irascível ao repetir uma frase, única e precisa, durante a mísica: “I Can Feel It”, anuncia, como numa exortação. De fato, em um disco um tanto climático, atento às ambiências, é realmente curioso – e também muito eficiente, inclusive pela economia do recado – que seja dado já de cara que estamos no primado das sensações. As músicas da banda reportam a percepções com ritmos desgovernados, ora mais rápidos, embora normalmente com uma sensação lazy em que tudo vai muito devagar.

Perder-se em si mesmo, eis a alegria das Breeders novamente comungada com os ouvintes. É uma banda revitalizada que os fãs – antigos ou novos – poderão encontrar em Mountain Battles: que o diga “Walk It Off”, hit instantâneo do disco, com o baixo vigoroso a proporcionar uma reatualização saudosa dos melhores momentos já vingados pelas irmãs Kim e Kelley Deal – núcleo de uma formação constantemente revista – em seus discos anteriores.

“Bang On”, a faixa seguinte, reafirma a perplexidade. Durante dois minutos de uma levada new-wave, a vocalista desafia o ouvinte enquanto canta: “I love no one/And no one loves me”. O canto da sereia das Breeders repousa sereno na combinação pouco ortodoxa de elementos como uma crua bateria com curvas desenhadas por um sinuoso baixo, além da voz rasgante de Kim Deal a emoldurar letras sobre tenras melodias. A mistura contribui para o arrebatamento do ouvinte, capturado pela aparente simplicidade do andamento e pelo tom lo-fi e garageiro que preenche as entrelinhas do som da banda – caso de “It’s The Love” ou de “German Studies”, cantada em alemão pisado, mal-tratado.

A aparente disparidade entre a toada faça-você-mesmo conciliada com tratamentos dedilhados das canções produz baladas de efeitos poderosos, nas quais ao se acentuar a ambigüidade, também potenciliza-se os sentidos da escuta, como na climática “Night Of Joy” – percorrida por um tom intimista, recupera a sonoridade de girlie groups dos 60’s. A música seguinte, “We’re Gonna Rise”, primeiro single do disco, retoma outros momentos na trajetória da banda, como “Off You”, do álbum anterior, ambas de levada serena e preguiçosa, sensação reiterada adiante também pelas guitarras havaianas em “Regalame Esta Noche” – sintonia fina mediada pelo espanhol deficiente, que acentua a passionalidade da canção.

DÉBIL
Uma certa sensação de debilidade nas interpretações e arranjos realmente dá a tônica e parte da graça à sonoridade da banda. Tal característica já rendeu momentos memoráveis, como as viradas da canção “No Aloha” (da obra-prima Last Splash, de 1993), ou em “Oh!”, de Pod (1990), o festejado debut – aquele que foi eleito por Kurt Cobain como seu disco predileto, em histórica entrevista dada em 1992 à extinta Melody Maker. Desse disco mais recente, a dobradinha “German Studies” e “Istambul” convocam para uma possível reinvenção do que anteriormente fora convencionado como noise. Fundadas num aparente non-sense, com seu ritmo arrastado e instrumentação esparsa, acentuam a decantada indolência como um dos traços dos mais distingüíveis na sonoridade das Breeders.

No desfecho, outra faixa francamente desafiadora convida o ouvinte a acionar o repeat do aparelho de som. Trata-se de “Mountain Battles”, a canção título. Um duelo entre a voz de Kim Deal e uma contínua linha de baixo posta em efeito – como na iminência de uma tremenda distorção, numa tênue sintonia – é o pano de fundo para versos sobre corações murchos pensando no que fazer. Enigmático, com em uma espiral, o som da banda recusa obviedades: “I ride shot gun/From the facility”, diz uma recitativa Kim Deal ao longo da canção. Originada de uma das bandas de maior credibilidade da virada dos 80/90, responsável pela formulação do indie nos 90, brizadas em 2008. A despeito do anódino punk-de-terninho e a favor da fabulação underground, a batalha está ganha em Mountain Battles.
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Box:
KIM DEAL
Reconhecida pela geração indie como uma guerreira do undergound, Kim Deal foi baixista dos Pixies – banda citada por artistas como Radiohead, Bowie e P.J.Harvey. Nos anos 90, divididiu os vocais com Kim Gordon na música “Little Troubel Girl”, sua notória colaboração com outra importante banda de rock norte-america, o Sonic Youth. Pod, o primeiro disco de sua banda, The Breeders, foi lançado em 1990 e recebeu elogios de toda a crítica em sua época.
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Originalmente publicado no Rraurl.com